A 2 de abril assinala-se o Dia Mundial da Consciencialização do Autismo, efeméride criada pela Organização das Nações Unidas com o objetivo de esclarecer mais e melhor a população mundial sobre a temática. Nos últimos anos foram dados passos importantes nesta área, mas ainda há algumas dificuldades, sobretudo no que respeita à aceitação do autismo pelas comunidades e pela sociedade.
EU SOU ESTRANHO, EU SOU NOVO
“Eu sou estranho, eu sou novo
Pergunto-me se tu também serás
Oiço vozes no ar
Percebo que tu não as ouves e isso não é justo
Não me quero sentir triste
Eu sou estranho, eu sou novo
Eu finjo que tu também és
Sinto que sou um rapaz de outro planeta
Toco nas estrelas e sinto-me deslocado
Preocupo-me com o que os outros pensarão de mim
Choro quando as pessoas se riem, faz com que me encolha
Eu sou estranho, eu sou novo
Agora percebo que tu também és
Digo que me sinto como um náufrago
Sonho com o dia em que isso não seja um problema
Tento integrar-me
Espero algum dia conseguir
Eu sou estranho, eu sou novo”.
Benjamim Giroux
TESTEMUNHO DE UMA MÃE
Olá! Chamo-me Paula, sou mãe do Duarte Manuel Mendes, hoje um homem com 33 anos diagnosticado desde a infância com autismo.
Vou partilhar um pouco da minha experiência e vivência enquanto mãe de um autista.
O Duarte nasceu de uma gravidez termo vigiada, sem registo de qualquer anomalia durante o período gestacional.
Porém, o parto foi muito complicado, o bébé encontrava-se numa posição transversal, o que me gerou muito sofrimento, porque as contrações aconteciam, mas devido à posição da criança o nascimento não ocorria.
Passadas cerca de 40 horas naquele doloroso trabalho de parto, o nascimento acabou por acontecer, tendo os obstetras recorrido ao uso de ventosas e fórceps.
Estas condições causaram danos e sequelas ao recém-nascido.
O Duarte chorava muito nos primeiros dias de vida, e já depois de ter saído da maternidade, devido a esse choro constante recorremos a um pediatra particular, que observando a criança detetou uma assimetria muito acentuada a nível das clavículas, tendo-se vindo a confirmar depois fratura da clavícula esquerda, tendo sido também alertados para outro tipo de sequelas a nível cerebral que poderiam surgir, devido ao historial do parto.
Ultrapassado este período e este episódio, a criança desenvolveu-se fisicamente muito bem.
Era o meu primeiro filho, eu não tinha experiência para atender a alguns sinais…
Contudo, com o decorrer do tempo, comecei a aperceber-me que o meu filho não nos olhava diretamente, por vezes parecia não ligar à chamada do seu nome…
Não era contínuo este seu alheamento, pois respondia muitas vezes positivamente a vários estímulos e chamadas.
Desenvolveu precocemente a sua linguagem, por volta dos 18 meses falava muito bem, articulava frases completas e até mencionava as marcas de vários automóveis.
Por volta dos 21 meses, contraiu uma doença que o obrigou a um internamento prolongado, devido à picada de um mosquito que lhe transmitiu a doença de calazar.
Durante o internamento de aproximadamente 3 meses, comecei a notar várias diferenças no meu filho, isto porque estava perto de outras crianças da idade dele, também internadas no mesmo hospital, e eu ia estando atenta aos diferentes comportamentos.
O meu filho pouco interagia com os outros meninos/as, era capaz de passar uma manhã inteira a encaixar e desencaixar legos, a fazer girar as rodas de um carrinho e a cantar a mesma canção.
Após a alta hospitalar, consultei vários pediatras e pedopsiquiatras afim de obter opiniões e respostas.
Nada de concreto me era dito, pois o Duarte era uma criança fisicamente perfeita, tinha para a idade um vocabulário vasto. No entanto, por volta dos três anos e meio, o Duarte fez uma regressão muito grande ao nível da linguagem e a nível comportamental. A criança não tinha qualquer noção do perigo, corria, corria, corria, ignorava escadarias, alturas… Comecei a aperceber-me também da sua insensibilidade à dor. Recordo um episódio dele a correr, tinha calçadas umas sandálias e tropeçou num paralelo, feriu o dedo grande do pé tendo rasgado a unha, a dor é insuportável, mas o Duarte não chorou! O sangue saía com abundância, mas nenhuma expressão de sofrimento ou dor o seu rosto deixava transparecer.
Bom, alguns episódios difíceis vivi, pois morava numa aldeia onde todos se conhecem, e muitas vezes era chamada à atenção porque as pessoas achavam que eu sufocava o meu filho com tamanha proteção.
No jardim de infância a interação do meu filho com as outra crianças era desajustada. Ele ficava eufórico quando chegava à sala, abraçava os coleguinhas com uma força descontrolada, e não tinha noção do cumprimento de algumas regras.
Muito me valeu a sensibilidade e experiência da educadora, que sem qualquer diagnóstico por nós, pais, apresentado, percebeu a diferença comportamental e trabalhou o caso muito bem, sensibilizando as outras crianças a compreenderem, aceitarem e amarem o Duarte do jeito que ele era.
Cito um episódio que me marcou profundamente:
Um dia, ao passarmos à porta de um casal vizinho que tinha um filho mais ou menos da idade do Duarte, as crianças, ao avistarem-se, correram uma em direção à outra. O pai do outro menino, ao aperceber-se, foi rapidamente em direção aos dois no sentido de proteger o seu filho. Então, o filho disse ao pai:
Pai, deixa o Duarte abraçar-me, ele não me faz mal, ele só quer mostrar que gosta de mim!!! (Reflexão do trabalho da educadora de ambos!)
Chegou, entretanto, a altura da entrada na escola primária.
Aqui o Duarte já ia referenciado com o diagnóstico de autismo, e como tal a criança foi colocada na sala de aula normal junto dos outros meninos, mas com uma docente só para ele, docente essa que iniciava nesse ano a sua carreira profissional… A experiência era nula, conhecer e compreender uma criança destas leva algum tempo…
Quando eu chegava com a criança de manhã à escola, a senhora desabafava comigo, manifestando-se triste pelo dia anterior, pois sentia-se insatisfeita porque a sua consciência dizia-lhe que poucas ou nenhumas conquistas tinha feito. Dizia-me que a frustração e carga emocional eram de tal ordem, que a primeira coisa que fazia assim que chegava a casa, depois do dia de aulas, era encher a banheira de água quente e submergir-se, soltando o choro para assim descarregar toda a tensão acumulada.
Cada um é como é, não temos todos o mesmo arcabouço, todos somos dotados de níveis diferentes de sensibilidade, e exigirmos demasiado de nós só dificulta a tarefa…
Entretanto, no segundo ano, foi colocada na escola uma nova professora para acompanhar o meu filho, docente que enfrentou o desafio de forma totalmente diferente, abraçou o projeto com um amor do tamanho do mundo, com muito trabalho e empenho, vencendo obstáculos e barreiras com maior facilidade.
Apesar de não residirmos em cidade grande de Portugal, o meu filho foi um sortudo por ter no seu trajeto escolar a profissional que lhe foi destacada, pois, para além de gostar do trabalho que desenvolvia, dedicou-se de alma e coração à causa e ao aluno, chegando mesmo a acompanhar-nos na consultas de desenvolvimento nas quais o meu filho era seguido no hospital pediátrico de Coimbra.
Terminados os 4 anos da escola primária, novas dificuldades e desafios surgiram, pois o Duarte tinha de transitar de escola, tinha de passar a frequentar a Escola Preparatória e Secundária da nossa zona, que ficava a cerca de 38 quilómetros, indo de transporte público, isto porque o autocarro tinha que passar nas diversas aldeias para apanhar os passageiros, incluindo os alunos.
Aqui as dificuldades foram muito grandes, porque o Duarte não tinha autonomia para viajar sozinho em transporte público.
Só o facto de entrarem várias pessoas, cada uma dizer algo lhe causava irritabilidade, insegurança, ansiedade, ao ponto de desencadear crises.
Mas algo de bom aconteceu, a docente que o acompanhara nos últimos três anos iria prosseguir com ele no ciclo preparatório.
Com a ajuda da professora e da direção da escola, conseguiu-se que o Duarte fosse transportado diariamente por táxi, e também uma auxiliar para o acompanhar.
Portanto, mais 6 anos com grandes desafios vencidos, o Duarte adquiriu autonomia em muitas áreas:
O Duarte conseguiu assinar o seu nome no cartão de cidadão;
O Duarte conseguiu ler palavras associadas a imagens;
O Duarte conseguiu aprender a andar de bicicleta, a abotoar um casaco, umas calças, uma camisa, a lavar os dentes, e a executar outras tarefas básicas.
Estas conquistas foram fruto de muito trabalho, dedicação, paciência e amor da família e dos professores, particularmente da professora que o acompanhou ao longo de muitos anos.
Entretanto, nova mudança, novas lutas, novas dificuldades, porque o Duarte terminou o seu percurso escolar e regressou para junto da família, família que passava por grandes lutas, grandes dificuldades.
Somos trabalhadores liberais, não temos rotinas certas, não temos horários, o pior ambiente que um autista pode ter, porque aquilo que mais estabilidade e serenidade lhe dá é um ambiente de rotinas certas.
Mas a vida é o que é, não nascemos todos em berços de ouro, é preciso lutar, e muito.
Esta nossa luta familiar, involuntariamente fazia com que o Duarte desencadeasse muitas crises violentas.
Tornou-se emergente a procura de uma instituição para o Duarte.
Mais dificuldades, umas instituições estavam lotadas, outras não recebiam utentes com a idade do Duarte, enfim…
Até que, finalmente, encontrámos resposta positiva numa instituição que o acolheu em período diurno, 5 dias por semana.
Novos desafios, novos sofrimentos, porque tudo leva o seu tempo a ser aceite e interiorizado, mas o amor vence tudo.
O Duarte foi institucionalizado aos 22 anos, relativamente perto da nossa residência, inicialmente vindo pernoitar diariamente com a família, passando igualmente os fins de semana connosco, até que, desde há 3 anos, por força de doença oncológica súbita minha, nos vimos forçados a institucionalizar o Duarte dia e noite, acautelando o seu futuro.
Contudo, nunca a família deixou de estar presente na vida do Duarte, e durante o período do meu internamento, o irmão, estudante universitário, fez uma pausa nos seus estudos, para o poder acompanhar diariamente, já que o Duarte se encontrava em casa, devido à pandemia Covid 19. Neste período, ele foi trabalhado de forma a compreender a minha ausência diária, que me obrigava a deslocar-me de ambulância para fazer os tratamentos de quimio em Coimbra. Esta rotina era por ele observada todos os dias, o que o levou a compreender e a aceitar, com relativa facilidade, ficar a viver definitivamente na instituição. Isto, porém, não invalida que em qualquer situação de crise do Duarte nós, a família, mais concretamente eu, sua mãe, não esteja imediatamente presente, quando alertada por uma crise mais intensa, o que ocorre frequentemente.
Estou muito grata a Deus pela responsabilidade que colocou nas minhas mãos, ao entregar-me um filho com estas características, que muito me fizeram crescer, como ser humano, como mãe, pois tenho tentado o máximo para corresponder à confiança que Deus depositou nas minhas capacidades.
Estas crianças/filhos são seres especiais, dotados de muita pureza, ingenuidade e bondade. Que este meu testemunho, dado de coração, leve coragem, esperança e força a todos os pais e famílias que acolhem estes seres, filhos de Deus como qualquer um de nós, portadores que somos também de imperfeições, que não sendo tão visíveis, ainda assim carecem da misericórdia Divina.
TESTEMUNHO DE UMA MÃE (Elisabeth Morão)
AUTISMO… autismo de alto funcionamento. Só agora aprendi o que significava.
Com poucos minutos de vida, os meus olhos de mãe apaixonaram-se por ti. Um ser humano, tão pequenino, tão indefeso, mas que possuía dentro dele a força incrível de seres especiais.
Lembro-me de ter lido, na obra de Nuno Lobo Antunes que as crianças autistas eram como o super-homem, tinham superpoderes, ainda que também tivessem uma fragilidade muito grande, a vossa “criptonite”: a interacção social e a comunicação não-verbal. Mas isso, só descobriria muitos anos volvidos o teu nascimento. Até lá, sempre te achei especial, a andar na pontinha dos pés, um olhar sempre um pouco alheado do resto, a fala que só surgiu aos dois anos e meio, numa frase perfeitamente construída e enunciada, “Mamã, quero um copo de água, por favor”, quando andei a ansiar pelo famigerado “mamã” durante mais de vinte e quatro meses. Depois eram os saltos, horas a fio, na cama articulada que já mal aguentava os socos repetitivos que, depois, compreenderia que eram fonte de conforto; e tantas particularidades, peculiaridades que me fizeram senão gostar ainda mais de ti. És muito maior do que alguma vez poderia ansiar, ainda que não acredites em mim quando te digo que, se pudesse escolher, teria exactamente a mesma criança que tive: tu, Luís Carlos, o meu filho, autista de alto funcionamento, sensível, doce, inteligente, sagaz, hilariante, de um sentido de humor e de um sarcasmo delicioso. Um ser humano tão incrível que suportou anos de assédio pela tua diferença, sem nunca te queixar, sem nunca dizer nada (senti-me tão culpada por não ter suspeitado o teu sofrimento). Ainda hoje, sofres na pele o olhar dos que não sabem, dos que nunca ouviram falar de autismo, dos que acham que tudo o que sai da norma não é “normal”, não é aceitável; alguns familiares, alguns amigos, alguns professores. Contudo, meu filho, nós sabemos, não há nada de errado em ti, és diferente, és especial, és brilhante. Deixo-te este testemunho, que embora já vá longo, é o meu abraço, ao meu filho, a minha batalha (como diria Balavoine). És, e serás sempre o meu orgulho. Por ti, derrubarei todas as barreiras da discriminação, todas as barreiras da ignorância.
Grata a ti meu filho que fizeste de mim, uma mãe melhor, e, certamente, um melhor ser humano.
Elisabeth Morão, professora de francês e inglês no Agrupamento de Escolas Frei Heitor Pinto, Covilhã.